Como a Amazônia se tornou berço do maior rebanho de bois no Brasil
Derrubada da floresta para formação de pastagens começou nos anos 1960, na ditadura. Hoje, quem faz o desmatamento ilegal são especuladores de terras, dizem especialistas. O que a pecuária tem a ver com o desmatamento da Amazônia?
A pecuária na Amazônia tem 402 anos de história, mas a sua relação com o desmatamento do bioma é mais recente. Começou por volta dos anos de 1960, quando o governo da ditadura militar atraiu grandes investidores para a região através de incentivos fiscais.
Na época, a maioria dos empresários optou pela criação de gado, pois ela permitia uma ocupação mais rápida do território, ao demandar menos investimentos em mão de obra e tecnologia (saiba mais).
Boi com chip na Amazônia: rastreamento mostra se a carne está livre de desmatamento
Amazonia Legal.
Bárbara Miranda
A expansão da atividade deu início a um processo acelerado de desmatamento da região, que se seguiu nas décadas seguintes, apoiado também pela mineração e agricultura – principalmente pela soja, a partir de meados dos anos de 1990.
A extração de madeira também devastou o bioma, mas ela não é classificada como desmatamento por não remover toda a vegetação.
Apesar de outras atividades contribuírem para a derrubada de floresta, a pecuária sempre despontou como a principal causa de desmatamento da Amazônia.
➡️De 1985 a 2022, 88% das áreas desmatadas viraram pastagem, 11%, agricultura e 1%, silvicultura, destaca a porta-voz do Greenpeace Brasil Ana Clis Ferreira, que consolidou dados da plataforma MapBiomas, que reúne estatísticas de desmatamento dos últimos 39 anos.
➡️Um recorte temporal mais recente mostra uma dinâmica semelhante no que diz respeito à criação de gado: 96,4% das áreas desmatadas entre 2018 e 2022 foram convertidas em pastagens, enquanto 0,83% viraram mineração e 0,68%, agricultura.
Nesta reportagem, você vai ler os seguintes tópicos:
a especulação de terras na Amazônia;
o problema dos fornecedores indiretos;
como a pecuária se estabeleceu na Amazônia;
quando ela começou a provocar desmatamento;
as pesquisas para aumentar a produção sem desmatar;
o que explica as taxas de desmatamento entre 2000 e 2023.
Florestas Convertidas em Pastagens na Amazônia V2 – Mob
Bárbara Miranda e Ighor Jesus | Arte g1
Especulação de terras
Segundo o coordenador do Laboratório de Ecologia e Restauração Florestal da USP Ricardo Rodrigues, a abertura de pastagens, atualmente, está mais relacionada a um problema de especulação de terras do que com a necessidade de aumentar a produção. Isso porque, hoje, o Brasil já tem técnicas para expandir a criação de gado nos pastos que já existem.
“Infelizmente, no mercado da terra no Brasil, principalmente na Amazônia, a área sem florestas vale muito mais que a área com florestas. No município de Paragominas, por exemplo, uma área sem floresta vale R$ 30 mil o hectare ou mais. E uma área com floresta vale R$ 3 mil o hectare”, diz Rodrigues.
“O único detalhe é que a pecuária é a atividade agrícola mais barata e mais fácil de ser tocada nessas condições. Então, por isso, ela entra como uma opção de uso daquela terra”, acrescenta.
“O pecuarista […] que está na frente do desmatamento, ele não está preocupado com a produtividade da sua pecuária, mas em manter aquela área aberta para, no futuro, conseguir vender”, conclui Rodrigues.
Segundo ele, esse tipo de situação é diferente do pecuarista da Amazônia que, realmente, tem na criação de gado a sua fonte de renda. “Esses estão focados na atividade e fazem tudo com nota, pagando imposto”.
Brasil tem 9 vezes mais gado e galinha do que gente
Onde está o problema
A diretora de Ciência do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) Ane Alencar diz que, de fato, o desmatamento na Amazônia é mais recorrente em terras públicas invadidas ilegalmente do que em propriedades privadas.
Mas o grande nó de tudo isso é que toda a cadeia de produção de carne, desde os produtores regulares até os frigoríficos, acaba contribuindo com o desmatamento quando compra animal de áreas desmatadas.
E essa é uma situação recorrente. Tanto é que, em 2009, o Ministério Público Federal (MPF) fechou acordos com frigoríficos da Amazônia exigindo que eles parassem de comprar bois de áreas desmatadas. A iniciativa foi criada após a divulgação de um relatório do Greenpeace chamado “Farra do boi na Amazônia”, que denunciava a situação.
Esses acordos, contudo, são voluntários e o Brasil ainda não tem uma política pública de rastreabilidade da cadeia bovina para fins ambientais.
De 2009 para cá, entretanto, o mercado de carne, principalmente os frigoríficos, tem tentado se adequar, diante de pressões grandes supermercados, restaurantes e importadores de carne, como a União Europeia, que irá proibir a entrada de produtos com desmatamento a partir de 2025.
É por isso que nos últimos 15 anos, frigoríficos e ONGs brasileiras vêm criando formas de rastrear a origem da carne, mas, até o momento, só têm conseguem monitorar, com precisão, seus fornecedores diretos, ou seja, as fazendas que vendem boi diretamente a eles.
“Às vezes, o animal passa por quatro, cinco fazendas antes de chegar na propriedade que vai vender para o frigorífico. Então a gente só está olhando para a última fazenda. A gente precisa olhar para as demais”, conta o procurador do MPF Daniel Azeredo.
Essas outras propriedades são conhecidas como fornecedores diretos.
O g1 visitou um pecuarista da Amazônia que está implementando um sistema de rastreabilidade individual do seu rebanho com chips e brincos, uma forma que pode controlar melhor as compras das fazendas e frigorífico (veja aqui).
Boi ‘pé duro’ e carne cara
A pecuária na Amazônia começou no século 17, quando colonizadores portugueses levaram, para a região, cabeças de gado oriundas da Península Ibérica. Os animais entraram por Belém (PA) e foram se espalhando para outras regiões, como a Ilha do Marajó, que se tornou o maior centro pecuário da Amazônia até os anos de 1960.
Na época, o gado criado na região era o crioulo, também conhecido como “pé-duro”, justamente por sua carne não ser nada macia. Além disso, ele levava até 10 anos para ser engordado – hoje se engorda um boi em três anos.
Por esses motivos, os estados da Amazônia tinham que comprar carne de outras regiões do país, conta Moacyr Bernardino Dias Filho, pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), na unidade Amazônia Oriental.
“A carne bovina vinha de avião. Eles eram conhecidos como ‘aviões carniceiros’ e vinham do antigo Goiás [Tocantins]. Então, imagina o preço dessa carne”, diz o pesquisador.
Nesse período, as pastagens eram naturais, ou seja, não eram plantadas.
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